CRONOBIOLOGIA   uma introdução

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 Cronobiologia

 

Nos seres vivos há muitas condições em que se observa uma periodicidade, como a própria vida, a divisão das células, os ritmos cardíaco e respiratório, o ciclo menstrual etc. No entanto, os ritmos intimamente relacionados à cronobiologia são aqueles associados aos ciclos geofísicos, notadamente o ritmo circadiano (cerca de um dia), também o circanual (cerca de um ano), assim como o das marés e o lunar: circalunar de aproximadamente 28 dias e o circasemilunar, este relacionado às marés mais altas devido ao alinhamento da lua com o sol.

Certamente remonta a tempos pré-históricos a observância pelo homem dos evidentes ciclos na natureza e nos seres vivos. Até recentemente, contudo, os ritmos biológicos eram entendidos como reações às mudanças ambientais, ou seja, seriam simplesmente induzidos externamente, como pela luz, pela temperatura e as estações do ano. Coube ao geofísico e astrônomo Jean-Jacques d’Ortous de Mairan, em 1729, dar início ao que hoje se entende por cronobiologia. Consta que observava, ao lado de seu telescópio, o movimento da folha de uma planta conforme a luz do dia. Intrigado, colocou a planta em câmara escura e notou que, mesmo em total escuridão, a planta continuava a se movimentar por vários dias como se acompanhasse o dia e a noite. De Mairan reconheceu a importância do experimento e recomendou a biólogos, botânicos e médicos seu estudo, prevendo resultados científicos lentos. Esse experimento levantou a questão da persistência do ritmo circadiano: estaria a planta respondendo a algum outro fator externo, como se acreditava, por exemplo temperatura, umidade, influência geofísica ou algum “fator x”? Estaria simplesmente condicionada pelo ambiente, por algo adquirido ou “memorizado”? Ou teria a planta um ritmo interno próprio, inato? Essa questão da persistência, intimamente relacionada à geração endógena desses ritmos, foi inicialmente investigada em plantas e muito depois também admitida em animais, tornando-se clara somente em meados do século XX. Tentativas de se eliminar um “fator x” levaram a experimentos em locais remotos, como em minas profundas, no ártico e no polo sul, inclusive em laboratórios espaciais.1,2

A partir dos anos 50 e 60, após a segunda guerra, estabeleceu-se a relevância científica dos ritmos biológicos inatos. Muitos contribuíram para isso, como os trabalhos de Colin Pittendrigh e Jürgen Aschoff, os quais organizaram, em 1960, o marcante Cold Spring Harbor Symposium on Biological Clocks, em que se atingiu uma uniformidade científica em torno do ritmo circadiano. Além dos conceitos de persistência, de geração endógena e do caráter inato dos ritmos, tem-se investigado e descoberto variados e relevantes aspectos ou propriedades no tocante à cronobiologia: a existência de um relógio interno, os osciladores, o acoplamento ou arrastamento (entrainment) do ritmo interno pelo externo (Zeitgeber), a reposta de fase, o marcapasso (pacemaker) gerador e controlador do ritmo, a fotorrecepção, a rheostasis (que diferentemente da homeostase se refere à fisiologia da mudança inerente aos ritmos biológicos), os genes dos ritmos e dos marcapassos, o sistema multioscilatório, o fotoperiodismo e o ritmo circanual.2

De acordo com a biologia evolucionista, todas essas propriedades dizem respeito a funções vantajosas para a sobrevivência, possuem uma utilidade.1 A habilidade de antecipar a variação ambiental promove ótima performance e a sobrevivência.3 Por exemplo, experimento com bactérias mutantes com diferentes relógios circadianos mostrou que sempre sobrevivem as que dispõem de relógio interno mais próximo ao ritmo luz-escuro a que forem submetidas.2

Estudos futuros em cronobiologia continuarão a explorar os impressionantes e criativos modos com que os organismos usam seus ritmos biológicos para coordenar suas funções internas e adaptação ao meio, inclusive a utilização do relógio interno para se orientarem no tempo e navegarem espacialmente de acordo com a disposição solar. Na clínica médica, esses estudos contribuem diretamente com a medicina do sono e se relacionam com a saúde em geral,4,5 bem como com o reconhecido campo da cronofarmacologia.6

  1. Pittendrigh C. An historical overview of circadian biology. Center for Biological Timing at the University of Virginia; 1992 [publicado em 2014]. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=GxC6qQSMW_Y
  2. Daan S. A history of chronobiological concepts. Protein Reviews. 2010;12:1-35. doi:10.1007/978-1-4419-1262_1.
  3. Kuhlman SJ, Mackey SR, Duffy JF. Biological rhythms workshop I: introduction to chronobiology. Cold Spring Harbor Symposia on Quantitative Biology. 2007, 72:1-6.
  4. Qureshi IA, Mehler MF. Epigenetics of sleep and chronobiology. Curr Neurol Neurosci Rep. 2014;14:432. doi:10.1007/s11910-013-0432-6.
  5. Lee EK, Douglass A. Sleep in psychiatric disorders: where are we now? Can J Psychiatry. 2010;55:403-12.
  6. Dallmann R, Brown SA, Gachon F. Chronopharmacology: new insights and therapeutic implications. Annu Rev Pharmacol Toxicol. 2014;54:339-61. doi:10.1146/annurev-pharmtox-011613-135923.

 

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